É certo dizer que Wes Anderson é um cineasta enfadonho que se tornou refém da sua própria estética. Os enquadramentos simétricos, os movimentos de câmera minimalistas e as atuações engessadas: começamos amando, mas, nos últimos anos, parece ter virado um grande ensopado de mais do mesmo. Não que O Esquema Fenício (2025), que (felizmente) continua em cartaz nas salas pelotenses, seja uma exceção. Pelo contrário, é exatamente tudo isso — mas com “alguns poréns”. Anderson revisita com cuidado e esperteza temas caros ao seu cinema: paternidade, irmandade e conflitos geracionais.
Continue reading O esquema de Wes AndersonMamãezinha querida: “Jayne Mansfield, Minha Mãe”, de Mariska Hargitay
Jayne Mansfield foi uma figura mítica do folclore hollywoodiano. Englobou de tudo um pouco, mas, essencialmente, foi sempre considerada um produto dos estúdios. Uma espécie de sex symbol que apresentava o clichê da loira superficial e afetada, de voz infantil. Uma vítima de uma época em que os estúdios fabricavam estrelas com um rebranding forçado e muito storytelling inventado, água oxigenada e maquiagem. Mas quem era a mulher por trás disso tudo, não é?
É isso que a também atriz Mariska Hargitay, filha de Mansfield, quer descobrir no documentário Jayne Mansfield, Minha Mãe (2025), disponível na HBO Max. Mansfield faleceu quando Mariska tinha três anos de idade, num acidente fatal de carro. Mariska e seus outros dois irmãos, fruto do casamento de Jane com o ator e modelo Mickey Hargitay, estavam no carro conduzido pelo último marido da atriz, o produtor Matt Cimber. O que sobrou para Mariska foi uma vida sem lembranças da própria mãe, de um vazio presente, muito marcado pela memória dos outros.
Continue reading Mamãezinha querida: “Jayne Mansfield, Minha Mãe”, de Mariska HargitayO desafiador cinema brasileiro
Nesta semana em que se comemorou o Dia do Cinema Brasileiro, Homem com H (2025), a cinebiografia de Ney Matogrosso com direção enérgica de Esmir Filho, chegou à Netflix. E não foi apenas à plataforma brasileira, mas também a outros 180 países pela gigante do streaming. Renomeado como Latin Blood, o filme tornou-se um marco entre tantos outros do nosso cinema neste ano que está apenas na metade. Esmir Filho realizou um filme belíssimo, sensual, que emociona e destaca o artista queer importante que Ney ainda é, alguém que rechaça normas, modismos e pudores.
Continue reading O desafiador cinema brasileiroAs Cores e Amores de Lore, de Jorge Bodanzky
Retratar um artista nos últimos anos de vida e, ao mesmo tempo, recapitular sua trajetória é um desafio. Mais eficaz que a cinebiografia, o documentário pode ser um campo fértil de expressão — mas também de armadilhas. Felizmente, As Cores e Amores de Lore (2024), de Jorge Bodanzky, evita essas ciladas com elegância, oferecendo um retrato sensível e honesto da artista plástica alemã-brasileira Eleonore Koch.
Longe de longos depoimentos e excesso de reverência, Bodanzky usa sua experiência — de obras como Iracema – Uma Transa Amazônica (1975) — para construir um filme que se guia por três princípios: ser transparente sobre sua relação com a retratada, dar voz direta à artista e espelhar sua estética na linguagem do filme. Lore ganha espaço para refletir, silenciar, contradizer-se. É a partir de suas cartas, cadernos, obras e fotografias que o documentário se desenha — e se destaca.

A relação entre realizador e artista tem uma origem afetiva: a mãe de Bodanzky trabalhou com Koch nos anos 1950. Essa conexão pessoal permite ao cineasta também revisitar suas próprias memórias, traçando paralelos com a vida de Lore — especialmente o êxodo forçado de ambas as famílias da Alemanha nazista. Há, portanto, uma viagem compartilhada de reencontros e projeções, como a identificação entre Lore e a mãe do cineasta.
Lore também era filha de Adelheid Koch, pioneira da psicanálise no Brasil, e o documentário não ignora os atravessamentos dessa herança. Ser mulher, artista e solteira torna-se uma escolha radical — e política. “Para ser artista, é preciso ter liberdade. Todas elas”, diz Lore, ao comentar sua decisão de não casar nem ter filhos. Com delicadeza, o filme trata das dores e dignidade dessa solitude, sem julgar e deixando ao espectador eventuais conclusões.
Um dos momentos mais especiais é quando a artista abre seu processo criativo de forma simples e direta. A cor como estrutura, a linha como forma, a repetição como método. A fotografia tem papel importante: servia de referência, de registro, e de ponte entre o que via e o que viria a produzir. “O que eu queria pintar, eu fotografava”, afirma.

Entre memórias afetivas e frustrações profissionais — como seu ressentimento com a Bienal de São Paulo — o filme mergulha também em suas paixões: os flertes com Torquato Neto, o triângulo amoroso com Ziembinski e Guerreiro, e as cartas apaixonadas de Paulo Emílio Sales Gomes, com quem assistiu Hiroshima, Meu Amor. Foi o seu quase-casamento.
A trajetória de Lore passa ainda por Londres, onde buscou sustento como artista e encontrou em Alistair McAlpine um mecenas encantado por seu trabalho. Mas o desencaixe persistia, e o retorno ao Brasil, nos anos 1990, selou um ciclo. No fim da vida, viveu entre o desencanto e a lucidez: “Nunca me arrependi”, disse a Bodanzky. Mesmo com dificuldades financeiras e enfrentando a venda da casa da sua família, sentia-se realizada em sua arte e falava com entusiasmo e propriedade.
Ao destacar a importância de saber a hora de parar — algo que, segundo ela, Volpi não soube fazer — Lore encerra com sabedoria uma vida pautada pela autonomia. A exposição póstuma na Bienal e a dolorosa imagem do espólio sendo vendido nos lembram os acertos e descompassos da vida de uma artista que sempre foi completa.
A Presença de Steven Soderbergh
Com passagem rápida pelas salas pelotenses, Código Preto (2025) foi uma dessas pérolas de um cinema alegórico que decide falar de temas como relacionamentos e o casamento em meio a um filme meticuloso sobre o universo da espionagem. É um filão dentro do gênero de ação, mas que, nas mãos do diretor norte-americano Steven Soderbergh — que figura como um dos mais interessantes e versáteis ao lado de Paul Thomas Anderson —, a trama ganha contornos ainda mais especiais.
Versátil e dono de um poder de síntese louvável, já que algumas de suas produções não possuem mais do que uma hora e meia, Soderbergh mantém o espírito criativo de sua gênese no cinema independente. De volta ao cartaz nas salas locais, o cineasta agora nos apresenta Presença (2024). Com ares de terror, mas que, na verdade, é um suspense psicológico que trabalha também, delicadamente, questões de linguagem e forma, o diretor mergulha em mais uma alegoria para falar de conflitos geracionais e de uma família imersa na incomunicabilidade.
Realizado com uma câmera subjetiva, pelo ponto de vista da “presença” do título, o filme é bem mais do que uma história sobre um espírito preso a uma casa no subúrbio de Los Angeles ou sobre a família que para lá se muda. É sobre a desconexão entre as pessoas e falta de empatia. Depois da morte de duas amigas, a filha da família começa a sentir, na casa, a presença de algo que busca se comunicar com ela. Soderbergh se distancia do óbvio — trilha sonora intensa e sustos previsíveis — e nos coloca diante da incógnita dos objetivos dessa presença, que descobrimos juntamente com o próprio fantasma que pouco sabe qual o seu objetivo ali.
A busca aqui é colocar o espectador mais do que nunca como observador, nessa visão quase “gameficada” na tela. Por vezes, esquecemos que somos parte da narrativa, como o a tal presença que assiste a tudo. Mas Soderbergh está lá para lembrar-nos disso — e de que, talvez, o que há de mais aterrorizante não resida no sobrenatural.
Texto para coluna de cinema do jornal A Hora do Sul, edição impressa conjunta de12 e 13 de março de 2025.